Incursão na cozinha - leia mais um trecho de O Sobrado da Rua Velha


Cris vestiu o roupão e saiu do quarto, encarando o resto do sobrado sob a penumbra. Antes de ir para a escada, olhou para toda a extensão do corredor. Esta era uma das partes de casa que mais lhe deixavam incomodada. Ali não era escuro, mas continha um aspecto sombrio. Principalmente quando ela se pegava pensando em José, que provavelmente passara por ali momentos antes de morrer. Se os espíritos realmente permanecem nas casas onde seus corpos morrem, era bem possível que o irmãozinho de Samuel pudesse estar no fim daquele corredor, olhando toda vez que alguém passava por ele durante a noite. Talvez nunca chegasse a comprovar isso, mas só de imaginar a presença a sua pele já ficava toda arrepiada.

Ela desceu pela escada com calma. Admirou os retratos colocados ali, obscurecidos pela falta de luminosidade, enquanto descia. Ao chegar no andar de baixo, acendeu as luzes. Instantaneamente ouviu o som da porta do armário na cozinha se fechando.

–Juliana, você está aí? – sussurrou.

Pergunta imbecil. Juliana era tão medrosa quanto a mãe para esse tipo de coisa. Nunca desceria sem acender as luzes.

Você não ouviu nada, disse a sua mente.

Foi até a cozinha em passos cautelosos. Acendeu a luz e viu tudo em ordem, exceto a mancha de gordura sobre a pia que teria que limpar na manhã seguinte. Resumindo, inércia total. No entanto, ela havia realmente ouvido o barulho. Não havia? Quem sabe.

Abriu a geladeira e pegou a jarrinha com água. Procurou também por um copo. A ausência de ruídos na casa nova, principalmente à noite, era completa. Para alguém que vinha de um lugar onde sempre havia algum som para escutar, aquela carência soava inquietante.

Cris subiu novamente até o segundo andar do sobrado, mas estancou no último degrau da escada ao ouvir um novo ruído vindo da cozinha. Agora era o som de talheres caindo no chão. Seu coração gelou dentro do peito. Sentindo as suas mãos tremerem, ela pôs a jarra com água e o copo sobre a parte plana do corrimão. Não teve tempo para pensar. Subiu da cozinha também o estouro de panelas se chocando dentro do armário. E o mais aterrorizante de tudo aquilo era ter a certeza de que não existia uma alma viva na cozinha. Pela primeira vez na vida, Cris estava tendo contato com uma manifestação paranormal.

Todas as forças que adquirira no banho se esgotaram. Pensou em chamar o marido, mas desistiu. Em um impulso insano, desceu correndo pela escada. A cozinha agora parecia a bateria de uma banda de rock. As portas dos armários se abriam e se fechavam. Pratos se estilhaçavam no chão e talheres eram despejados feitos água de cachoeira. Não viu isso, mas os sons eram tão claros que dava para o ouvinte desenhar as imagens mentalmente. Cris voltou para o primeiro andar, sentindo o som ainda mais alto e ameaçador. Temeu o que poderia acabar encontrando, todavia, resolveu conferir de qualquer jeito.

Quando a luz da cozinha foi novamente acesa, os sons cessaram automaticamente. Cris se deparou com o ambiente praticamente intacto. O máximo que viu foi a porta de um dos armários oscilando. Ela não conseguiu acreditar no que estava acontecendo. Olhou para os lados em busca de alguma coisa que provasse que aquilo não fora uma alucinação. Logicamente não encontrou nada.

Deus, isso é um castigo? 

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